O coronel Amendola, caveira número 1: "Sempre acreditei que as guerras passam e fiz o meu trabalho sem tratar ninguém como inimigo"
Durante uma ação policial no Morro da Mangueira, no início dos anos 80, o então chefe de operações do 4º Batalhão da PM passou a ser visto com desconfiança por alguns colegas de farda, por uma atitude absolutamente inusitada naquela época, em pleno regime militar. O major deu ordem de prisão a um cabo que participava da operação porque o subordinado estalara a mão no rosto de um dos presos, um traficante pé de chinelo. Um desses tapas na cara que o capitão Nascimento costuma dar em seus presos, no filme "Tropa de Elite". Como sempre, o major agiu com discrição e não divulgou a prisão do cabo.
Na década seguinte, o mesmo major, agora coronel reformado da PM, se tornava o primeiro comandante da Guarda Municipal do Rio, criada em 1993 na gestão do prefeito César Maia, sob protestos de grupos de direitos humanos porque seu nome constava como agente da repressão política segundo denúncia do Projeto Brasil Nunca Mais, o dossiê da Arquidiocese de São Paulo sobre o terrorismo de estado pós-64 com base em relatos de presos políticos feitos na Justiça militar. Amado por uns e odiado por outros, dos dois lados do balcão, ele é o coronel Paulo César Amendola, de 63 anos, homem que criou o agora polêmico Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), a tropa de elite da PM (foto abaixo), que está no centro da discussão sobre polícia por causa do filme (veja aqui no Globo Online o chat em vídeo sobre o filme, promovido pelo blog ) e que em 19 de janeiro completa 30 anos de vida e mortes.
Caveira número 1 – uma distinção criada depois que saiu da tropa de elite em 1982 - Amendola era major quando criou a semente do Bope, o Núcleo da Companhia de Operações Especiais (Nucoe), em 19 de janeiro de 1978. Idealizou também o símbolo do grupo: um crânio com um punhal encravado de cima para baixo ("vitória sobre a morte") e duas pistolas cruzadas - o que o colocou na mira do movimento de direitos humanos, pela primeira vez.
Para criar o Bope - que hoje faz escola e é reproduzido em vários estados brasileiros - Amendola se inspirou no seriado americano "Swat" (foto à direita abaixo), acrônimo em inglês para Armas e táticas especiais. A idéia teve respaldo do governo porque em 1974 a PM falhou no resgate de um major, feito refém e morto numa rebelião de presos no Rio. O major Darcy Bittencourt foi promovido a coronel após a morte. Ele era o diretor do Instituto Penal Evaristo de Moraes, o Galpão da Quinta. Nesse mesmo presídio eu debutei como repórter investigativo, em 1981, ao descobrir que policiais militares espancavam presos por seis dias seguidos após a fuga do assaltante de bancos conhecido como Peruano, que resultou na morte de um policial militar.
NA LINHA DE FRENTE DO CHOQUE
Filho de um capitão do Exército, que o queria na força, Amendola tem o gen de combatente mas buscou seu próprio caminho. Aos 20 anos de idade, ingressou como oficial nas fileiras da Polícia Militar em 30 de novembro de 1964, apenas oito meses após o golpe que reforçou a militarização de todo o aparelho policial. Em 1968, aos 24 anos, Amendola estava na linha de frente do temido Batalhão de Choque, a arma do regime para reprimir as manifestações de estudantes.
- Todo movimento deixa uma parte contente e outra descontente - teoriza Amendola.
Para ir às batalhas campais do Centro do Rio, ele embarcava nos veículos conhecidos como "espinha de peixe", dividido por duas fileiras de bancos de madeira com uma haste no meio para os policiais não caírem e já desembarcarem prontos para o confronto.
Como tenente do Choque, ele jogou muita bomba de gás lacrimogêneo para conter protestos civis. O batalhão já usava dois tipos de caveirão, um blindado que na época era chamado de Brucutu, que lançava jatos de água nos manifestantes, e outro conhecido como Paladino (na foto acima). Nos anos 60, as polícias e Forças Armadas tinham táticas e equipamentos especiais para o que classficam de Controle de Distúrbios Civis (CDC).
"O CAPITÃO NASCIMENTO É UM DESEQUILIBRADO"
Apesar do passado de força bruta, o oficial reformado da PM garante se identificar apenas com a honestidade e a notoriedade alcançada pelo capitão Nascimento, o anti-herói de "Tropa de Elite" (foto acima).
- O capitão Nascimento é um desequilbrado emocional - diz Amendola que gostou do filme, mas o achou "um pouco fantasioso". Ele confessa que o cansaço o impediu de manter os olhos abertos o tempo todo, apesar da ação e do barulho dos tiros. "Eu dormi um pouco, mas vou ver de novo", disse. Para quem enfrentou na vida real cenas semelhantes a de um filme policial, deve ser um pouco chato, sim. Prova de que a ficção é entediante diante da realidade. Em comum com Nascimento, Amendola tem fama de bom instrutor. Deu aula de explosivos até para as Forças Especiais, a tropa de elite do Exército. O prefeito Cesar Maia afiança a capacidade de liderança de seu ex-comandado em 1993.
- Amendola era sobretudo um qualificador de homens para a ação. Transformava um garoto tímido num policial destemido e preparado para momentos críticos - testemunha o prefeito. homem que criou o Bope está agora escrevendo suas memórias com um livro provisoriamente intitulado de "Operações Especiais - a verdadeira história".
- Não quero criticar nenhuma obra mas o pessoal exagera um pouco - diz Amendola.
Ele garante que não tem nada do que se envergonhar em 30 anos de serviços prestados à polícia (ele se reformou em 1994, um ano depois de fundar a Guarda Municipal). "Sou incorruptível", afirma. oje é um pacato cidadão que anda desarmado (“pra que usar pistolas se os bandidos estão armados de fuzis?”) e cumprimenta velhinhas nas ruas do Rio Comprido, por onde passa a caminho de um restaurante a quilo do bairro. No mesmo bairro dirige a segurança de uma grande universidade do Rio, onde chegou para apagar um incêndio - uma bala perdida deixou uma aluna tetraplégica. o trato com a imprensa, apesar de divergências entre ambos, sempre foi um gentleman. Mas já foi tão Bruce Willis em “Duro de Matar” que a idéia de criar uma tropa de operações especiais na PM surgiu enquanto passava sete meses internado num hospital após um grave acidente de automóvel, que acabou lhe custando dois centímetros da perna direita. Saiu do hospital e, três anos depois, em 1981 ainda teve disposição física para acabar com o tiroteio que durou dez horas, entre 400 policiais e um bandido da extinta Falange Vermelha, o mais longo da história do Rio e talvez do Brasil. O bandido era o assaltante de bancos José Jorge Saldanha, o Bigode, encurralado no conjunto habitacional dos bancários, na Ilha do Governador. O episódio é relatado pelo repórter Jorge Martins, que hoje cobre o plantão da madrugada no GLOBO, no livro “Cinqüenta anos de crimes” (Editora Record), mas à época Amendola conseguiu mais uma vez escapar dos holofotes. - Eu nunca quis que o nosso grupo de operações especiais saísse como herói em nenhum episódio porque essa visibilidade muitas vezes atrapalha o trabalho policial – afirma Amendola. oje não esconde o orgulho de ter liquidado a “fatura” no confronto dos 400 contra um, como os velhos bandidos se orgulharam muito tempo de chamar o confronto no conjunto dos bancários, como registra o livro "Quatrocentos contra um", de William, o professor, um dos fundadores da maior facção do crime no Rio.
O BATISMO DE FOGO DA SEMENTE DO NUCOE
Amendola larga a deliciosa torta de maçã para relembrar o tiroteio mais longo do Rio:
- Quando cheguei ao local do tiroteio, havia policial para tudo que é lado, mas nenhum plano. Chamei os delegados Luis Mariano e Borges Fortes (já falecidos) e pedi para traçar um plano de ataque, que foi ensaiado ali mesmo num prédio vizinho. Desrespeitei uma regra em ações táticas que determina que o chefe fique na retaguarda. Eu fui na frente com o objetivo de lançar uma granada dentro do apartamento onde estavam os bandidos. Ninguém conseguia se aproximar porque os bandidos atiravam nas paredes de gesso e haviam matado três policiais. Eu fui me arrastando pelo chão com o meu segundo na cobertura, com uma metralhadora. Contei o tempo para que a granada explodisse no momento exato para que eu pudesse entrar logo em seguida, sem que os bandidos reagissem. Só não contava que houvesse uma geladeira deitada no meio da sala, como uma barricada. Bati com a cabeça protegida por capacete, mas meu companheiro entrou atirando por cima de mim. Quando tivemos certeza de que os dois homens estavam mortos, ergui uma camiseta branca como havia combinado, mas os policiais no cerco não entenderam e mandaram fogo. Tive que saltar novamente para me proteger. Desci do prédio e então avisei que o tiroteio tinha terminado. oi o batismo do Núcleo da Companhia de Operações Especiais (Nucoe). Naquele mesmo ano agitado pela criminalidade no Rio, o Nucoe foi testado e aprovado ao sufocar uma rebelião de presos com reféns no Complexo penitenciário da Frei Caneca.
NO DOSSIÊ CONTRA A TORTURA
Mas a história do Nucoe começa quase uma década antes, em 4 de julho de 1969, com a criação do primeiro grupo de elite oficial da polícia do Rio, o Grupo de Operações Especiais (Goesp), na gestão do então secretário de Segurança, o general Luís França de Oliveira, um ano depois do recrudescimento do golpe, com o AI-5. Nesse mesmo grupo, em 1972, ele foi o primeiro policial brasileiro a desativar uma carta-bomba ao Brasil, com o destino do consulado israelense no Rio. Remetente: o grupo terrorista Setembro Negro, que nasceu com o ataque aos atletas nas olimpíadas de Munique. Amendola lembra que os serviços de inteligência brasileiros haviam recebido a informação de que cartas-bombas seriam enviadas ao país, em protesto também contra a ditadura militar. Um equipamento de raios X detectou o explosivo nos Correios, que à época era dirigido por um comandante da Marinha, ligado ao Cenimar, o Centro de Informações da Marinha, hoje CIM (Centro de Inteligência da Marinha). grupo especializado em explosivos do Goesp mais tarde deu origem ao Esquadrão Anti-Bomba, que hoje é subordinado ao Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), a tropa de elite da Polícia Civil. om apenas cinco anos de polícia, Amendola foi chamado para integrar o Goesp liderado pelo detetive-inspetor José Paulo Boneschi, já falecido, que dia desses foi homenageado pela Polícia Civil, mas seu nome consta na lista dos 444 torturadores, no dossiê Brasil Nunca Mais, como torturador de presos políticos. Amendola jura que nunca viu Boneschi torturar alguém, mas admite que ele era um defensor dos ideais do regime militar de 64.
- No combate à insurreição contra o regime militar, havia idealistas de ambos os lados – relembra Amendola, que admite ter sido um combatente do Goesp, que era formado por homens das polícias civil, militar, bombeiros e do Salvamar.
A estrutura do Goesp era semelhante a dos famigerados Doi-Codi (Destacamento de Operação de Informações- Centro de Operações de Defesa Interna), que eram formados por homens das forças armadas (com exceção da Marinha) e das polícias, criados em 1970 para enfrentar a luta armada e que viraram centros de tortura de presos políticos. Amendola consta num dossiê feito pelo grupo Tortura Nunca Mais com base no projeto Brasil Nunca Mais, mas não há qualquer denúncia concreta de tortura e sim de atividade no combate à "subversão armada".
Policial forjado nos anos de ditadura, Amendol admite que participou de operações de cerco e combate, mas rejeita qualquer acusação de que tenha torturado quem quer que seja, nem mesmo presos comuns. Um de seus livros de consulta hoje é "Direitos Humanos, coisa de polícia", de Ricardo Balestreri. Não dá para dizer que Amendola virou ardoroso defensor dos direitos humanos, mas não há contra ele denúncias de violações desses direitos. Apresenta um semblante tranqüilo quando fala do passado e de sua atividade policial.
- Sempre acreditei que as guerras passam e fiz o meu trabalho sem tratar ninguém como inimigo – observa, dentro de sua ética policial militar.
Fonte: O Globo
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
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